quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Como foi filmada a primeira cena

Diário de produção: Gravações da primeira cena


Por Samuel Hermínio

Planejamento da cena

Gravar cenas de um filme é um processo trabalhoso, mas não necessariamente caro. O ponto de partida é sempre o roteiro, um registro escrito do que será filmado. Sabendo o que queremos ver na tela pensamos então nos detalhes, em tudo o que deverá estar presente ou ausente das imagens e como estas serão capturadas.

Para o espectador a realidade está resumida naquilo que aparece no vídeo, os elementos gravados pela câmera e posteriormente modificados em um processo de edição. Nada do que está ao redor interessa, desde que se tome o cuidado de montar uma seqüência lógica de imagens que seja coerente com a experiência do espectador.

O roteiro de Sonoro Silêncio foi montado em um processo de debate e reflexão, onde cada cena foi pensada dentro dos limites técnicos e financeiros da equipe. Nossa proposta sempre foi a de usar o mínimo possível de dinheiro, porque esse é o item mais difícil de conseguir. Nossa estratégia é a de trabalhar com a colaboração mútua entre pessoas que participam do projeto ou que se identificam com ele.

Enquanto debatíamos a primeira cena fomos percebendo que ela deveria ser filmada no palco do Paulo Afonso Folia, porque não existe outro evento com a mesma estrutura e estimativa de público. A idéia era aproveitar o show de uma das bandas principais do evento para filmar o público agitando, e depois, com as cortinas fechadas, filmar nossos atores encenando a apresentação. Um jogo de imagens misturando as cenas dos atores e do público daria a impressão de que a platéia estava agitando para nosso personagem.

Para trabalhar sem dinheiro e sustentado apenas na colaboração de pessoas você tem de ser muito flexível, bem relacionado, desenrolado e ter boa capacidade de improvisação. Havíamos conversado com o pessoal da prefeitura na semana anterior ao evento, e não houve resistência em conseguir autorização para fazer as imagens. Eu já sabia que não poderíamos mexer muito no palco, mas não era necessário, porque tudo o que precisávamos era de um visual que deixasse claro para o espectador que o personagem estava em um evento de grande porte. A única coisa que precisaria estar funcionando era a iluminação.

Do nosso lado, todos já havíamos tido alguma experiência com palco pequeno, mas ninguém sabia de verdade como funcionavam os bastidores de um show de grande porte. Essa informação não apareceria no filme, mas influenciava todo o trabalho de obtenção das imagens e portanto era crucial.

O show de uma banda renomada geralmente ultrapassa o valor de dois carros populares 0 Km, nada pode dar errado. Uma parte dos equipamentos e apetrechos do palco são responsabilidade da organização do evento e a outra é colocada pela banda, mas via de regra a banda determina tudo o que vai acontecer durante o show, desde disposição dos elementos até a configuração do som e iluminação. Nada acontece no palco sem que eles dêem autorização. Ter o direito de chegar no local era apenas a primeira parte, teríamos também que convencer a produção da banda a nos permitir trabalhar.

As gravações não teriam quase nada de especial, seriam em sua maior parte a dublagem de um playback. Na semana do evento conversei com Chuck e decidimos colocar uma banda inteira encenando, para criar um clima de maior realismo. Escolhemos a banda Age of Fear para trilha sonora porque tinha músicas com solos de guitarra muito virtuosos, evidenciando a habilidade do guitarrista. Eu fiz uma edição de áudio utilizando duas músicas, onde retirei o vocal e deixei apenas a passagem dos solos. Convidamos Saulo Henrique (ex Menntes Diver-Genntes) para dublar o baixo, Deiveson Feitosa (chuveiro Elétrico) para dublar a guitarra base e Maizena (Chuveiro Elétrico) para assumir a bateria.

No texto original, o personagem tocava no show e depois se jogava para a platéia, então cortaríamos a imagem e mostraríamos a cena 2, onde ele caía no chão do quarto, deixando claro que tudo não se passava de um sonho. Na semana anterior eu tinha feito um desenho descrevendo a seqüência (storyboard), que foi entregue ao pessoal da prefeitura. Mostrei também a toda a equipe e a alguns amigos, mas o curioso é que ninguém me perguntou como diabos filmaríamos o pulo. O palco do Paulo Afonso Folia fica a cerca de dois metros do chão, não é uma altura boa para aterrissar sem amortecimento. E no desenho que fiz ele se jogava realmente em cima da platéia. Uma solução fácil era chegar cedo e parar um caminhão na frente do palco, fazendo o ator se jogar em um colchão colocado na carroceria, mas nós não tínhamos onde conseguir o veículo.

Chuck é cantor, tem boa presença de palco e é desenrolado, mas não entende nada de guitarra. O personagem é um guitarrista que no sonho tem projeção, ou seja, naquela cena em particular ele é um sujeito que sabe dedilhar muito bem o instrumento. E a trilha sonora estava a altura, os solos eram realmente rápidos. Nestas condições uma imagem de frente, que mostrasse os movimentos das mãos de Chuck, não iria convencer. Poderíamos filma-lo de longe, evitando os detalhes, mas eu achava que a seqüência perderia realismo. Conversei com Chuck e decidimos convidar Deiveson para dubla-lo em plano fechado (close), mostrando apenas as mãos. Ambos têm cor de pele muito parecida, bastava que usassem a mesma roupa. No entanto, os braços de Chuck são mais peludos do que os de Deiveson, e as pessoas poderiam notar. Resolvemos isso utilizando uma camisa de manga comprida.

A equipe se reuniu três dias antes do evento para debater os trabalhos. Estávamos eu, Chuck, Deiveson e Driele. Eu pressupunha que a banda principal do evento chegaria cedo e faria todo o processo de ajuste dos equipamentos, voltando ao palco na hora do show. Também imaginava que teríamos muito espaço físico para fazer as imagens.

Como todo o resto da cena era fácil, nos concentramos na seqüência do pulo. A minha idéia era colocar um colchão no palco e enganarmos o espectador, trabalhando os ângulos de câmera e fazendo uma edição inteligente das imagens. Chuck não gostava da idéia, achava que esta história de ângulos simplesmente não passariam a idéia de que ele pulava do palco. Na verdade, ele tinha espalhado para todo mundo semanas antes que a cena seria mais ou menos assim:

"Astrobaldo está no camarim, esperando a hora de entrar. A platéia está ansiosa pela apresentação, o local está lotado de gente. Astrobaldo não agüenta a expectativa e vai para o palco, chega até a cortina e olha por ela para ver as pessoas"

Depois cortaríamos para a cena 2 e o ato de abrir a cortina seria confundido com ele tirando o lençol do rosto e caindo da cama. Mas isso não tinha nada a ver com o roteiro, e eu sinceramente achei esta seqüência muito pobre, perderia o impacto de ver o público agitando enquanto ele tocava. Debatemos bastante e chegamos a uma terceira alternativa: Astrobaldo tocaria, mas no meio do show ele se enrolaria com o cabo da guitarra e cairia. Eu achava que esta seqüência combinava mais com o perfil do personagem do que as outras duas, mas decidimos filmar todas as três e ver depois qual ficava melhor.

A primeira tentativa

Marcamos para chegar no local às 18h00. Nosso trabalho estava planejado para durar 20 minutos, estourando uma hora, mas resolvemos reservar outras duas horas para os contratempos. Todo mundo tem problemas, mas se você não tem dinheiro a probabilidade de alguma coisa dar errado cresce exponencialmente. Começamos por não termos arrumado uma filmadora de verdade. Driele tinha duas máquinas fotográficas digitais muito boas e eu tinha uma tão ruim que não valeria apena utilizar. A qualidade de filmagem das máquinas de Driele não faziam vergonha, e se filmássemos duas vezes com duas máquinas teríamos quatro ângulos de imagem, então resolvemos utiliza-las.

Quando chegamos a banda principal ainda estava na estrada, e ninguém sabia dizer que horas eles chegariam na cidade. Aproveitei para conversar com o pessoal da iluminação e do som. Pecisávamos das luzes piscando para dar um clima de show, e do nosso playback tocando no retorno mas sem sair pelas nas caixas da frente. O palco não estava arrumado, tinha apenas uma bateria desmontada e algumas caixas de som. Teríamos de esperar a banda chegar, arrumar tudo, passar som, testar equipamentos e aí sim, se desse tempo e tivéssemos autorização, filmaríamos. A equipe ficou o tempo todo esperando na avenida, conversando e comendo bolachas recheadas com refrigerante.

A proveitamos o tempo vago para gravar um making off, eu e Chuck. A banda veio chegar já depois das 21h00, todo mundo agitado e correndo contra o tempo para montar toda a parafernália do show. Eles entrariam 23h30, logo ainda tínhamos chance de fazer alguma coisa.

A banda da noite era o Biquini Cavadão. Procurei o produtor deles, e ele me pediu para esperar. Muito tempo depois me chamou, e disse que não ia dar, estavam atrasados e ainda tinham que voltar a Salvador na mesma noite para pegar um avião na manhã seguinte. Me pediu desculpas por não poder ajudar e autorizou que ficássemos no palco para fazer imagens do público durante o show.

Chamei todo mundo e avisei o que tinha acontecido. O pessoal foi curtir a festa, mas Driele e Chuck aceitaram subir no palco para fazer as imagens. Eu ficaria para dar suporte caso houvesse algum problema. Na hora de filmar Chuck sumiu e eu tive que assumir uma das câmeras.

Tentando mais uma vez...

O pessoal da prefeitura prometeu que no dia seguinte ia colocar a cortina. Marcamos de chegar um pouco mais tarde desta vez. O palco estaria à disposição da Margareth Menezes, que é da Bahia e provavelmente chegaria cedo, mas não víamos a necessidade aparecer antes das 20h00. Apenas eu precisava chegar antes, para fazer as articulações e deixar tudo "no gatilho".

O primeiro problema que encontrei foi a ausência da cortina. Me preocupava a reação dos atores ao simular uma apresentação na frente de 35 mil pessoas, com quase todo mundo que eles conhecem lá embaixo assistindo. Pior foi quando subi no palco e vi a estrutura da Margareth. Nosso personagem é um roqueiro frustrado, que na cena toca Heavy Metal. A Margareth é cantora de axé, que dança o show inteiro e precisa de espaço.

A configuração de um palco de rock é extremamente diferente de um palco de axé. Num palco de rock a bateria fica no meio, logo atrás dos músicos, junto com algumas caixas de som, e tem caixas de retorno na frente. Os músicos de rock geralmente sabem tocar e cantar, por isso se movimentam pouco e é comum usarem pedestais para os microfones. O som da Margareth é sustentado na percução, ela se movimenta muito, tem dançarinas e não toca instrumento algum.

Para as nossa filmagens, a configuração do palco era a pior possível: uma lona branca no fundo refletia toda a luz da frente, que já não era pouca. A percução estava no meio, com a bateria colocada de lado. Da metade para frente não tinha mais nada, esconderam até mesmo as caixas de retorno. A Margareth ia cantar com microfone sem fios, não precisava de pedestal. Sinceramente, aquilo não parecia nem de longe com um palco de rock, não tinha muitos ângulos para esconder os instrumentos, a iluminação não disfarçaria nada porque estava tudo muito claro, e o espectador iria sentir falta daqueles elementos básicos de um palco tradicional. Conversei com o produtor da banda e ele me colocou uma série de restrições, inclusive proibiu que usássemos a bateria.

Eu estava com vontade de perder esta noite e deixar para gravar na seguinte, com o palco da banda Eva. Mas seria uma decisão arriscada, porque se algo desse errado não teríamos outro dia para gravar. Procurei a organização do evento e descobri que Silvinho, músico da cidade, tocaria depois da Margareth e não se importava de nos ceder o espaço, inclusive colocou a banda dele à disposição para encenar. O maior problema era que eles se apresentariam lá pelas duas da manhã, e eu temia que a equipe não quisesse passar a noite toda trabalhando, ou que nesse meio tempo alguém se embriagasse. Na verdade, se houvesse disposição da equipe e Silvinho terminasse de tocar antes de amanhecer nós poderíamos montar o palco do nosso geito e fazer as melhores imagens.

Procurei a equipe para conversar. Deiveson adiantou logo que não poderia ficar até depois das 22h00. Maizena nem apareceu. Saulo se prontificou, Driele e Chuck também. A idéia era filmar no palco da Margareth em contra-plogée (de baixo para cima) por garantia, mostrando somente o que estava acima da cintura dos atores. Isso ia disfarçar os elementos do palco, mas não dava para ter mobilidade e as imagens ficariam muito pobres. Tentaríamos uma segunda vez depois do show da Margareth e se tudo desse errado pediríamos o palco depois do show do Silvinho. Na última hipótese ainda tínhamos o palco da banda Eva no outro dia.

Quando fizemos as primeiras imagens Driele ainda não tinha chegado e eu operei a câmera. Avisei a todos que estavam no palco que faríamos a encenação, mas não dissemos nada para o público. O mesário de som não quis colocar nosso playback para tocar nos retornos, e usamos um pen drive com fones de ouvido. O barulho externo era enorme, não dava para entender muita coisa mas funcionou razoavelmente.

Para conciliar as imagens com a configuração do palco decidi não mostrar os componentes da banda tocando juntos, fizemos as tomadas de cada ator um por um para depois juntarmos na edição. Deiveson e Saulo fizeram esta primeira seqüência quase parados, mas Chuck usou quase todo o espaço disponível e eu consegui boas imagens posicionando a câmera em um ângulo que pegava a partir da coxa dele, mostrando ao fundo as cabeças do público que estava mais longe e disfarçando a ausência dos retornos que, subentende-se, ficariam abaixo da linha de visão. Já tinha uma quantidade considerável de gente na rua, mas ninguém estava muito preocupado com o palco principal e não tivemos incidentes. Acho que fomos confundidos com o pessoal da banda passando o som.

Enquanto esperávamos Margareth tocar mostrei as imagens a Chuck, e ele pôde avaliar a própria performance. Depois fui providenciar um cubo para tocar nosso playback, já que na próxima tomada encenariam Saulo e Chuck ao mesmo tempo e precisávamos de um áudio em comum. Finalmente a Margareth saiu do palco, a equipe dela desmontou a estrutura e entrou o pessoal de Silvinho. No meio desta correria, conversei com ele e fiquei sabendo que o tempo estava apertado, não ia dar para fazer as imagens. Insisti e ele liberou alguns minutos.

Entramos correndo e filmamos com a equipe de Silvinho ainda montando as coisas. Na correria, esqueci de avisar o que estávamos fazendo, e como as pessoas esperavam a próxima banda, a atenção estava voltada para o palco principal. O trio elétrico tinha acabado de passar e o público que estava lá embaixo não era fã de rock. Driele assumiu a câmera, eu saí da cena, Saulo se movimentou muito pouco. Chuck incorporou um rockeiro e dançou feito louco, pulou, bateu cabeça, fez performances invejáveis. Os auto falantes do palco estavam desligados, o som do trio tocava pagode e era tão forte que não dava para escutar nosso playback. A platéia não entendia nada do que estava aconcetendo, e os mais afoitos começaram a falar palavrões. Alguém jogou uma lata de cerveja no palco. Nossa sorte foi que o locutor pegou o microfone e avisou ao público que estávamos fazendo um filme.

Coletamos boas imagens. Ao invés de quatro ângulos de câmera ficamos com apenas um. Ao todo, foram quase doze horas de trabalho sem considerar a escrita do roteiro, planejamento e edição. A seqüência depois de editada, incluindo os créditos, logomarcas e passagens em preto, não dura mais do que dois minutos e quarenta segundos. A cena mesmo, aquilo que interessa para o filme, tem apenas um minuto e meio.

Clique aqui e veja os detalhes do roteiro

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